quarta-feira, 20 de março de 2013

A caixa de leite

Ela estranhou o modo como o homem agia diante dela. Não era comum receber afeto ou carinho de alguém,  pois em sua infância e adolescência era tida como uma menina perturbada e fria. É de se  calcular já que suas lembranças são tão amargas. Fitou os olhos do rapaz por algum tempo enquanto seus olhos lacrimejavam e tornavam-se tão vermelhos quanto seu sangue. O homem fechava os olhos na tentativa de não ver mais a moça em sua frente, a sensação é de que estava sendo torturado. Ao perceber o mal que estava causando esticou o braço até o chão deixando o canivete escapulir dos seus dedos e ajoelhou-se.
- Me ensina a amar?
Disse ao rapaz enquanto apertava forte sua mão. Ele fez uma expressão de quem não entendeu nada, como se estivesse num papel de uma interrogação.
- Eu vejo nos seus olhos, lá no fundo... eu vejo amor. Me ensina a amar?
Ele abaixou a cabeça, era impossível não sentir aquela pontada no coração muito menos pena dela. Assentiu movimentando a cabeça para cima e para baixo. Ela então se permitiu a apenas sorrir com o canto dos lábios e começou a desamarrar o corpo dele. Finalmente ele pode se sentar, esticou suas pernas e braços e respirou aliviado. Julia levantou-se do chão e caminhou até a escrivaninha novamente, mesmo que com as pernas que tremiam de dor chegou até lá.
- Você consegue ver algum papel? alguma folha, guardanapo?
-  Uhm uhm
Negou e observou curioso, pois queria entender o que ela estava fazendo.
- A há! Olha o que achei!
Mostrou a caixa de leite vazia que estava atrás da televisão. Pegou novamente a caneta que havia usado e entregou nas mãos dele.
- Escreva seu nome, por favor.
Ele sorriu enquanto pegava a caixa de leite, segurou firme em uma de suas mãos e escreveu em letra de forma pois para ele seria mais legível.
- L-U-C-A-S Lucas? Nome legal!
Riu baixinho enquanto começou a cantarolar uma música um tanto estranha, porém parecia ser alegre. Ele se levantou rapidamente e se dirigiu até o banheiro, parecia que não fazia alguma de suas necessidades há anos e não há um dia. Enquanto isso ela andava de um lado para o outro do quarto na tentativa de conseguir pensar, no mesmo instante o telefone tocou. Logo ela correu e o atendeu.
- Alô!
- Julia meu amor! É mamãe! Como você está?
Assustada ao ouvir quem era sentiu que estava suando frio, deu um passo para trás e tentou falar de um jeito que não transparecesse seu nervoso.
- Oi... mãe.
Por um segundo ambas permaneceram em um silêncio mórbido.
- Filha, eu te liguei pra saber como você está, mas infelizmente para dar uma notícia triste também. Seu querido avô fale.... tu tu tu tu.
Julia em um ato de impulso desligou a ligação antes que sua mãe pudesse terminar sua frase, em seguida derrubou o telefone de uma forma brusca no chão e ficou estática. Não havia um modo pior para deixa-la em choque. Assustado com o barulho Lucas correu ao seu encontro e a abraçou, não era preciso palavras ou explicações ele apenas sabia que precisava fazer isso. Ela continuou estática até o momento em que começou a rir, não era uma risada normal e sim uma gargalhada extremamente maléfica e perturbadora.
Ele tentava não ficar com medo, no fundo tinha o conhecimento que ela precisava do amor que ele tinha dentro de si e que pra ensina-la a amar tinha que a ajudar com os monstros que viviam dentro dela e inclusive seu passado amargurado. Finalmente ela parou e a risada foi dissipando aos poucos e foi se tornando lágrimas. Lágrimas de rancor, ódio e falta de perdão.
- O que mais queria era ter sido a morte dele, queria ter tido a chance de deixar de ser humana e virar dor. Entraria no corpo dele e faria todos os cantos doerem da pior forma possível.
Disse Julia enquanto as lágrimas pioravam e fizera ela salivar ao ponto de se babar e cuspir na blusa xadrez que Lucas vestia. Devagar ele a empurrou até o espelho e apontou para o reflexo de ambos. Lá estava ela, alta, extremamente magra, cabelos longos e negros, seus olhos eram um azul claro incrivelmente lindo que lembrava os mares do caribe porém sem brilho algum e totalmente apagados, suas olheiras eram profundas e seu nariz era fino demais e arrebitado só não era mais fino que sua boca. Vestia apenas um short jeans bem gasto e um top vagabundo preto, Lucas também não estava melhor que isso não. Ele era um pouco mais alto que ela, tinha uma leve pança de chopp nada que fosse muito feio, seus rosto chamava atenção para sua barba malfeita, mas seus lábios eram na medida certa, o seu cabelo curto castanho chamava atenção pelo seu aspecto sujo, seus olhos eram como o breu e o nariz um pouco largo. Eles se olharam por um tempo até Lucas colocar suas mãos no rosto de Julia e puxou os cantos dos lábios dela para cima como um gesto de quem pedia um sorriso. Ela sorriu e se virou para poder ficar de frente para o rapaz, olhou fixamente para os olhos dele elevando seu braço esquerdo até seus dedos tocarem a boca dele, deslizou os dedos devagar naqueles lábios e encostou devagar os seus neles. Ele fechou os olhos e sentiu-se realizado naquele momento. Então ela se afastou um pouco dele e olhou para abaixo com uma expressão de arrependimento e disse:
- Me desculpe... não queria lhe causar dor.
Lucas sorriu e a puxou de volta para seus braços e em seguida depositou um demorado beijo na testa dela.

terça-feira, 19 de março de 2013

Feridas do passado

Ao se dar conta do que havia feito ela se desesperou, ao olhar para o chão viu um buraco negro sem fundo. Na tentativa de se proteger tateou o homem até encontrar seus dedos e os entrelaçou nos seus. Seu pânico era demasiado amedrontador, o homem que já estava em choque com tal ação da moça sentiu seu coração paralisar ao ver a expressão facial dela. Ela arqueou suas sobrancelhas, arregalou o máximo que podia os olhos e abriu a boca, mas o intrigante é que ele olhava para o chão e não enxergava nada além do piso de taco gasto cheio de arranhados e poeira. Toda a situação levava ele a pensar que ela gritaria novamente, porém por mais tempo e não, não saiu nem se quer um "ai" dali. Foram cinco segundos assim, até que a campainha tocou e ela olhou para a porta e novamente para o chão, não havia mais nada.
Da onde estava pode enxergar as letras que estavam na carta por mais que fossem pequenas.
- Ju-li-a... Julia.
Leu em voz alta pausadamente e depois reafirmou lendo novamente. Julia era o nome dela, mas por mais estranho que fosse ela não lembrava. Afastou-se do homem e foi até o móvel da sua televisão, ele era comprido e branco então também era utilizado como escrivaninha. O cheiro de café, álcool e cigarro vindo dela chegava a ser insuportável até mesmo para Julia.
- Achei!
Pegou o papel manchado de café que estava debaixo de uma pilha de roupas no móvel e a caneta falha que estava ao lado. Escreveu diversas vezes Julia e colou na porta da entrada. Frustrada com o que via a sua volta em um pulo foi até a cama amarrotada, sentou-se e suspirou. Olhou a sua volta depois direcionou seu olhar para o travesseiro, logo o levantou. Estava ali, o canivete de seu avô. Neste momento foi impossível evitar as lembranças. Então começou a recordar de seu passado fúnebre. Ela morava com sua mãe, seu avô e irmão. Todo dia sua mãe sumia durante as tardes e voltava dias depois, seu irmão por ser mais velho fazia o mesmo só que costumava voltar sempre antes. Era sempre Julia e seu avô.
- Querida venha aqui.
Sempre que ouvia estas palavras seu estômago embrulhava e sentia suas pernas cambalearem sem fim. Não era questão de escolha, então ela se aproximava do velho.
- Sente-se no meu colo.
Naqueles tempos aos seus doze anos ela já havia aprendido a ser obediente e o que lhe custava se não soubesse. Portanto sentou-se sem hesitar. O velho tirou do bolso de seu macacão um canivete antigo e enferrujado com as iniciais dele "RL". Puxou o vestido da menina até suas coxas ficarem a mostra, nesse momento era nítido as cicatrizes mal curadas e nojentas. Ela se arranhava por dentro, triturava seus dentes rangendo imperceptivelmente e engolia a quantidade imensa de saliva que era produzida em sua  boca.
Ele se limitava a abrir um largo sorriso e começava a fazer sem parar cortes nas coxas dela, quando era o suficiente então as apertava e revirava os olhos de uma forma que a coitada segurava o vômito preocupantemente. Após momentos de agonia ele a empurrou e levantou-se da cadeira, o pesadelo parecia parar ali até ele começar a tirar a sua roupa.
- HMMMMM!!! URRRRRR!!!
Interrompeu o homem que tentava falar, ou ao menos chamar sua atenção. Ele estava com o olhar preocupado, porém conseguiu. Julia despertou-se de sua péssima lembrança e olhou para baixo. Lá estava ela repetindo a ação, suas coxas não eram mais visíveis diante de tanto sangue e parecia que a dor deixava sua cor mais viva, não era um vermelho qualquer.
O homem deixava claro sua ânsia pela morte, seu olhar suplicava desesperadamente por isso e não era pela dor que ela causou nele e sim pela dor que ele sentia ao ver a dela.


segunda-feira, 18 de março de 2013

O mistério do homem

Quatro horas da manhã e ela olhava agoniada para o relógio incessantemente, seus olhos piscavam repetidamente ao ouvir as gotas d'água caírem na pia. Não passavam os minutos e a tontura ainda fazia parte dela, logo iria adormecer ou era o o que ela queria pensar.
Sentia o sangue escorrer pelo seu corpo e não se importava nem um pouco, algo ali lhe dava uma sensação de satisfação por mais que quisesse demonstrar sua dor.
No mesmo segundo ouviu um barulho estrondoso vindo do lado de fora da casa.
- Não é possível! Essa hora não costuma passar alguém pelas ruas.
Pensou enquanto sua agonia se misturava com a curiosidade e pavor. 

Atreveu-se a olhar rapidamente pela janela e viu um corpo caído no chão, por mais escuro que estivesse conseguiu ver que era um homem, mas não se estava vivo.
- Será que deveria ir lá ajuda-lo? Falou em um tom baixo olhando para o seu reflexo esdrúxulo no espelho. A dúvida lhe tomou a mente e o pânico também, enquanto pensava observava o rastro de sangue que deixara pelo quarto. Após ficar um minuto na inércia resolveu tentar esquecer o corpo esticado na rua e lavar seu corpo imundo.
A água estava gelada, já que não pode consertar o chuveiro, na realidade fazia um tempo que não se importava com algo. Ligou mesmo assim e sentiu a água cair pelas suas costas que ardiam ferozmente. Umas luzes repentinas surgiam a sua volta e começou a rodar seu corpo e a medida que ficava mais tonta as enxergava cada vez mais intensas e para piorar a situação de fundo escutava uma risada extremamente irritante e debochada. O tempo realmente não passava para aquela pobre garota. finalmente vencida pela sua própria mente ela socou os azulejos causando um pequena e visível rachadura.
- SAIAM DAQUI! SAIAM DAQUI!    
Ela gritava o mais alto possível, parecia tentar lutar contra algo dentro de si mesma. Sua voz falhava em todo fim de frase então suspirou o mais fundo possível e deitou na banheira. 
Dessa vez o tempo lhe deu trégua e passou rapidamente, só que ela havia adormecido em um sono pesado. 
Finalmente eram dez horas da manhã e as buzinas altas acabaram por acorda-la. Levantou-se desnorteada a procura de alguma toalha e apenas encontrava uma de rosto jogada no chão deu de ombros e agachou para pegar. Olhou para aquela pequena toalha rosa e viu a quantidade de manchas de sangue que haviam nela, revirou os olhos e bufou se secando lentamente.
O telefone tocou, grunhiu caminhando nua e o atendeu.
- Julia?
Era um homem com uma voz um tanto grave no outro lado da linha. Ela não entendia nada, arregalou os olhos e respondera.
- Ju-julia? Esse é meu nome? Quem é? m-m-m-me diz???
 Balbuciou enquanto seu corpo tremia descontroladamente e abriu os olhos. Era quatro e quarenta e um levantara correndo da banheira, não era possível distinguir o que era suor ou água.
- Que pesadelo!
Exclamou enquanto procurava uma toalha, como em seu sonho só encontrou a toalha de rosto rosa atirada no chão ensanguentada. Desistira de pega-la pois sua mente bloqueara aquela ação por medo. Novamente o telefone tocou, dessa vez não fez nenhum esforço para atender e se limitou a colocar uma roupa quente pois uma frente fria havia tomado conta do seu quarto.
Desesperadamente procurava algum cigarro pela casa e estava ali, em baixo da cama do lado de um par de meias. Sentou-se na cama, acendeu e tragou duas vezes seguidas enquanto tentava de alguma forma não pensar. Sabia que desse jeito não funcionaria portanto pegou as moedas espalhadas pelo móvel e resolveu sair para comprar mais um maço. Ao abrir sua porta deparou-se com o homem deitado em seu tapete, o grito que soltou foi o suficiente para acordar a vizinhança inteira, que obviamente ligaram suas luzes e olharam pela janela. O homem se mexia pouco e parecia estar mais desnorteado que a própria garota. Sua consciência dizia para ligar para polícia ou simplesmente expulsa-lo para fora dali, mas por algum motivo puxou o corpo para dentro de sua casa.
- Á-á-água... por... favor... Disse o homem misterioso.
Ela não hesitou e foi a procura de um copo, havia apenas um limpo e era na realidade sua caneca preferida com desenhos de zebras que seu pai lhe dera de presente antes de morrer. Suas lembranças passaram em um segundo na cabeça, balançou-a pra lá e pra cá e emburrou consigo mesma enquanto colocara o copo no filtro. Entregou receosa a caneca para aquele homem estranho, mas algo nele a fazia se sentir bem.
- Está tudo bem? Perguntou em um tom de preocupação.
- Não... A voz grave do homem sumia a medida em que tentava falar.
Aquele olhar doce que aquele homem possuía encantava cada vez mais o coração daquela sofrida jovem. Parecia estar amando a primeira vez, era estranho demais para si mesma. Arqueou a sobrancelha e quebrou a caneca na cabeça dele. Ao mesmo tempo que sentia algo crescer dentro de si mesma ela não queria que ele fosse embora e simplesmente vivesse. Avistou uma tesoura em cima do baú onde guardava seu passado e a pegou, amarrou o homem da melhor forma que podia, apagou todas as luzes e fechou todas as cortinas.
Ela queria suicídio, mas parecia querê-lo mais que isso. Teve uma idéia, esticou seu braço e abriu a boca do rapaz olhou bem para sua feição que aos seus olhos era incrivelmente bela e pronto. Cortou sua língua. Acordando amedrontado ele não pode nem gritar, eram apenas ruídos irreconhecíveis e lágrimas sem fim.
Seus olhos pareciam perguntar "por que?" mas ela sorria enquanto suas lágrimas também escorriam.